Por que pessoas tão qualificadas trabalham como motoristas de aplicativos?

Você tem algum amigo, parente, vizinho ou conhecido que trabalha como motorista de aplicativos? Quando você utiliza esses serviços, costuma conversar com os motoristas? Quantos você conheceu e que têm formação universitária em diferentes campos do conhecimento (engenharia, educação, gestão, artes dentre outros). Em síntese, de quantos você ouviu histórias de carreiras promissoras interrompidas pelo desemprego? 

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Me pergunto: o que faz com que pessoas altamente qualificadas em diferentes áreas depositem seus diplomas no porta-luvas do carro, enquanto transferem às plataformas a definição das suas rotas profissionais? 

Num primeiro momento, as pessoas procuram alguma atividade em que possam ter alguma renda imediata. Embora haja um aumento constante no número de drivers de aplicativos, muitos apontam queda no retorno financeiro.  Por outro lado, os níveis de motivação humana relacionados aos sentidos do trabalho se esgotam na medida em que os sujeitos se entendem completamente “controlados”: destaque-se o fato desses aplicativos estarem centrados na tecnologia. Lembra do filme Tempos Modernos?

A dimensão humana, as competências de elevado nível de complexidade são pouco empregadas, visto que a atividade esgota-se nas rotas, tempo médio, avaliação, número de corridas no dia. Nesse contexto, tudo já está previsto, calculado e estruturado.  Então, para onde vão as capacidades humanas tão especiais, construídas ao longo da formação e experiência prévia? Nesses modelos, continuarão no porta-luvas. 

Com algum conhecimento de causa, compartilho algumas inferências derivadas das interações que temos com profissionais de diferentes áreas. Essas inferências partem dos dados e relacionamento que temos a partir da plataforma Nobis, que fornece conectividade em serviços de A a Z. Escolho algumas que chama atenção:

1.    Há dificuldade para exercer autonomia. Parece simples, mas não é. Autonomia em serviços implica assumir responsabilidade sobre uma atividade de ponta a ponta: interagir com clientes, compreender as necessidades, fazer orçamentos, saber precificar seu próprio trabalho, organizar a agenda, cumprir prazos, responsabilizar-se pelo cumprimento dos padrões de atendimento. 

2.    Mais do que alfabetização tecnológica, é preciso aprender a transformar habilidades, desde as mais simples às mais complexas em produtos ou serviços fora de fluxos contínuos, mas em fluxos descontínuosou por projetos. Cada negociação entre clientes e prestadores de serviços preserva especificidades. 

3.    Associar renda a emprego, em vez de associar renda ao trabalho. Por mais que a realidade diga: “não tem emprego para 95% dos desempregados” muitos insistem em procurar emprego. É preciso virar a chave: da empregabilidade para a trabalhabilidade.

4.    Curto prazo x médio e longo prazo. Embora tenhamos necessidades urgentes, como pagar as contas, precisamos construir a médio e longo prazo nossas vidas profissionais. Se há algum tempo, há sinais claros de que algumas profissões desaparecerão, é preciso começar a redirecionar a rotaprofissional a médio e longo prazo. 

5.    Aprendemos o tempo todo de maneira “tutelada”.É muito comum ouvir das pessoas, direta ou indiretamente: “quem vai fazer isso por mim?”(quem vai dizer como fazer, quando fazer, quanto devo receber, quem vai me trazer os clientes…). É cultural mesmo! Resguardemos as exceções, e temos percursos que se assemelham ao seguinte:

a.    Nascemos e nossos pais ou responsáveis tutelam tudo: comida na boca, hiper proteção e baixa exposição ao sol, às frustrações, aos desafios…

b.    Depois vamos à escola, onde por muito tempo tudo ficou centrado na figura do professor e da escola: o que aprender, como aprender, quanto aprender…tudo muito bem estabelecido e regrado.

c.    Na universidade, continuamos tutelados…poucas instituições de ensino superior conferem autonomia ao sujeito que aprende. Conteúdos, roteiros de aprendizagem, como aprender e sistematizar ainda estão concentrados no professor, na universidade, no MEC. As Diretrizes Curriculares Nacionais são pouco inovadoras, o ensino é avaliado por provas…

d.    Nas empresas e organizações públicas não é diferente: estruturas hierarquizadas, tudo predefinido, estabelecido, sacramentado…pode ser criativo desde que siga o que está definido. Os planos de cargos, salários, carreira…tudo pensado para seguir a rota…

6.    A demissão para muitos é como um pássaro de asas cortadas, que aprendeu a viver nos limites de gaiolas. A aprendizagem do voo para fora da gaiola não é instantânea, exige musculatura e uma dose de coragem. As incertezas intimidam e o ambiente compreendido geralmente se atenta à escassez.

7.    O desemprego é percebido como fracasso de cada dia…e a dificuldade de entrar no mercado de trabalho como empregado reforça essa impressão que se tem sobre si. 

O desemprego é estrutural e afeta a todos. É preciso se fortalecer e se desenvolver individual e coletivamente, visando encontrar novas formas de entrega das nossas capacidades.  Estamos longe de uma economia desenvolvida, mas é imperativo nos articularmos coletivamente para encontrar alternativas de geração de renda que permitam desenvolvimento econômico e social. 

Visto que as necessidades continuam perenes no tempo, mudam apenas as maneiras como entregamos as soluções. Apreciemos ou não, a inovação tecnológica nos serviços é um caminho sem volta. Destaque-se a necessidade dos modelos de negócios estarem centrados nas pessoas, apoiadas pelos fluxos tecnológicos.

Eu trabalho todos os dias para conectar as pessoas a partir do que elas sabem fazer, do que elas gostam de fazer. Além de promover renda pelo trabalho, eu aposto no desenvolvimento do potencial humano, considerando suas áreas de formação, suas experiências e o que elas têm de melhor.  Não se trata de usuários ou perfis, mas de pessoas, histórias e biografias que precisam valorizar a si mesmas e acreditarem que podem fazer e assumir a direção das próprias rotas. 

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